
Dois elementos têm ajudado as revistas do Batman a manter sua força nos últimos tempos. O primeiro é a afirmação do herói como identidade principal, sendo Bruce Wayne, seu alter ego, mero coadjuvante, tanto nas histórias quanto na vida da personagem. O segundo é a investigação da falibilidade das decisões do Batman, com conseqüências freqüentemente catastróficas para sua cidade, Gotham, ou todo o universo DC, como nas sagas Crise infinita ou Jogos de guerra. Um dos méritos de Batman – O cavaleiro das trevas, dirigido por Christopher Nolan, é a maneira como lida com essas duas possibilidades.
A primeira acaba revelando a que ponto pode chegar a interpretação de Christian Bale. Seu Bruce Wayne é alguém incomodamente neutro. Quando tem reações, são sutis. Enxergamos seu rosto como uma máscara, e só percebemos que há nuances quando tomamos consciência de que essa máscara é sempre adequada à situação – ou, no caso de Bruce, de esconder o que ele sente em relação a determinada situação.
Bale não está só como grande intérprete, o que transforma Batman – O cavaleiro das trevas numa incomum superprodução que deve mais ao elenco que aos efeitos especiais. Transitando ao redor de seu Batman há três atores incomparáveis, Michael Caine (Alfred) e Morgan Freeman (Lucius Fox), do lado do bem, e Heath Ledger (o Coringa), como vilão. Cabe a eles mostrar ao público as expressões que faltam ao rosto de Wayne. Podemos pensar, por exemplo, no Coringa como a loucura que Bruce Wayne reprime no fundo de sua mente.
Se o Batman é pura objetividade, Alfred é parábola, é metáfora, é o caminho que dá voltas quando é impossível ir em linha reta em direção a um certo lugar. Se Batman é ação, Lucius Fox é, o tempo todo, uma reflexão sobre a ética das ações. É como se as três personagens fossem a alma e o coração do herói. Um quarto coadjuvante é interpretado por Aaron Eckart, ator apenas mediano mas que não compromete o equilíbrio. É Harvey Dent, cujo destino no filme, se já é conhecido dos fãs de quadrinhos, será motivo extra de surpresa para aqueles que só se interessam pelo Batman no cinema.
O jogo entre as personagens constrói em Batman – O cavaleiro das trevas uma poderosa pedagogia para a ética. No filme, há algo das idéias de John Nash (matemático que os cinéfilos conhecem de Uma mente brilhante) sobre cooperação. Como no clássico “dilema do prisioneiro” da teoria dos jogos em que Nash é especialista, as personagens do filme precisam, o tempo todo, optar entre o que parece ser o melhor para cada uma delas como indivíduos e o melhor para a comunidade.Batman – O cavaleiro das trevas opõe o individualismo à cooperação, a sobrevivência individual à solidariedade, a decisão individual à decisão coletiva.
Faz isso tanto como mensagem tanto como elemento da narrativa – o que acaba produzindo alguns de seus melhores momentos de suspense. No processo, acaba redimensionando valores que o homem ocidental moderno, de tão acostumado com eles, pensa como naturais e, portanto, não reflete sobre eles: a ordem social como construção, e não como algo dado; a democracia como realização do bem comum, e não apenas manifestação da vontade individual. Para os brasileiros das grandes cidades, que convivem com um estado de violência que lembra muito uma guerra civil, Batman – O cavaleiro das trevas pode ter ainda mais força que para o público de outros lugares.

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